
Além das fronteiras:
estudantes estrangeiros em terras brasileiras
Te convidamos a conhecer as histórias de quem cruzou fronteiras em busca de conhecimento. Explore os sonhos, desafios e vitórias de estudantes, descubra como eles se adaptaram, se transformaram e contribuem para enriquecer a educação no Brasil.

Desafios e caminhos para a educação de imigrantes no Brasil
Apesar das garantias legais, o aumento do fluxo migratório expõe dificuldades estruturais para integrar crianças e adolescentes imigrantes no sistema educacional brasileiro.
A educação é um direito universal e fundamental assegurado por lei. O Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 4°, enfatiza que a criança deve ter acesso “à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”, sendo papel da família, da comunidade e do poder público assegurar a efetivação desses direitos.
Ao se tratar do imigrante e seu acesso à educação, o Estatuto, em seu artigo 5°, expressa que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. Sendo assim, o direito do imigrante se iguala ao do nativo, sendo essencial também para sua inserção na sociedade.
Crescimento do fluxo migratório no Brasil
O Relatório Anual de Migração da OBMIGRA, de 2023, aponta um aumento considerável no fluxo migratório comparado ao de 10 anos anteriores, 2013. Os registros de solicitação de residência na época chegaram ao número de 105.094, entre solicitações de longo termo e temporárias. Já os dados de 2022 revelam que o volume de registros de residência passou a 1,2 milhão.
Durante este período de aumento na entrada de imigrantes no Brasil muitas crianças também passaram pela nossa fronteira. O dado mais recente, registrado no relatório, afirma que, em 2022, 66.031 crianças foram registradas, após um período de baixa entrada durante a Covid-19, sendo em sua grande maioria crianças com faixa etária da primeira infância até os seis anos de idade.
Além do registro comum de imigrantes existem as solicitações de refúgio que em 2022 chegaram a 18.127 entre crianças e adolescentes. Esse número não é o maior já registrado, considerando que em 2019 foram realizadas 27.665 solicitações de refúgio. Ainda assim, esse número pode ser considerado alarmante, principalmente pela faixa etária envolvida no processo.
Realidade das escolas
Apesar da lei assegurar a educação para todos, analisando os dados é possível perceber que o Brasil pode não ter a estrutura adequada para receber, de forma adequada, todos os imigrantes em salas de aula. Entretanto, o Núcleo de Estudos de População Elza Berquó - Nepo- da Universidade de Campinas - Unicamp - publicou no ano de 2020 um relatório detalhado sobre os “Estudantes imigrantes internacionais no Brasil matriculados no ensino básico”, registrando 130.067 alunos imigrantes nas escolas, em 2019.
Esse é o dado mais recente apresentado, devido a não inserção desta contagem nos censos escolares realizados pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) nos anos seguintes.
Entre os mais de 130 mil alunos matriculados, estão os filhos da influenciadora gastronômica Salsabil. Mãe de 4 filhos, se mudou da Síria para o Brasil em 2010 por conta da guerra, juntamente com seu esposo.
Na época, ainda sem muita perspectiva de futuro, tinha apenas os dois filhos maiores, em idade escolar, mas teve muito receio de colocá-los em alguma, em um primeiro momento.“A língua sempre foi um empecilho e a cultura era muito diferente. Tinha medo de como eles seriam tratados na escola”, explica Salsabil.
Apesar da preocupação inicial, seus filhos se adaptaram bem à escola e aprenderam o português de forma mais rápida, por serem menores e mais abertos a essas mudanças.
ONGs como suporte na educação de crianças refugiadas
Outro ponto destacado por ela, é o papel das ONGs atuando, hoje, como potenciais educadores. “Quando eu cheguei, não tive ajuda de ONGs, ainda existiam poucas que atuavam nessa área. Mas hoje, muitas já dão até aula de português de graça e meus filhos podem participar de diversas atividades”, conta.
Uma das organizações indicadas por Salsabil é a IKMR (I Know My Rights) (Eu Conheço Meus Direitos), parceira do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) atuando em defesa dos direitos das crianças em situação de refúgio no Brasil.

A IKMR valoriza e preserva as origens das crianças | Fonte: arquivo pessoal IKMR
Barreiras e soluções para a inclusão escolar
O projeto também tem como objetivo, oferecer um serviço de “educação complementar com orientação educacional multidisciplinar [...]com uma equipe pedagógica formada por pedagogas e professoras licenciadas que realizam o acompanhamento pedagógico de alunos”, como descrito no site da organização.
A organização Abraço Cultural também oferece projetos voltados à educação dos refugiados e imigrantes. Fundada em 2015, a ONG tem duas sedes, uma em São Paulo e outra no Rio de Janeiro, atuando como uma escola de idiomas.
O coordenador pedagógico da sede carioca, Alexandre Velho, explica a motivação para a realização do projeto: “o processo mais difícil na educação de uma pessoa refugiada é o da aquisição do português, principalmente em seus aspectos comunicativos. Uma vez transposta essa barreira, com práticas de diferenciação pedagógica para ajudar na motivação dos estudantes e na autorregulação da aprendizagem, outros processos são completamente tangíveis.”
Levando em consideração a Lei da Migração número 13,445 aprovada no ano de 2017, que explicita no Art. 3º, que: “A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes: I - universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos; [...]; XI - acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social”, Velho reitera que “migrar é um direito humano e a integração social, cultural e econômica são a base para que esse direito possa ser exercido de forma plena.”


A paraguaia brasileira
'' Eu achava que era fluente em português até começar a estudar ''.


O tereré é uma bebida ancestral e típica do Paraguai. Mesmo que seja semelhante ao chimarrão do Rio Grande do Sul, a prática de tomar tereré faz parte da cultura paraguaia de forma intrínseca, tanto que foi reconhecida como patrimônio imaterial da humanidade.
E é tomando tereré, com um copo cheio de erva-mate e uma térmica estampada com a bandeira do Paraguai, que Yohana me recebe sentada no sofá, com as pernas cruzadas, preparada para a nossa conversa.
Yohana Mikaela Paredes nasceu e cresceu na capital paraguaia, Assunção, uma cidade tão seca e quente que é impossível não ter ar condicionado em casa - mas não por luxo e sim por necessidade - cercada por uma família amorosa. Seu pai é policial, sua mãe vendedora, sua irmã mais velha, já casada e com filhos, e seu irmão mais novo estudante.
- Eu sou a do meio, a esquecida - diz em tom de brincadeira.
Yo foi a filha que ficou menos tempo em casa, saindo a primeira vez com 17 anos para realizar uma missão no Brasil.
Apesar disso, ela me conta que nunca teve vontade de sair de sua terra de origem, nunca teve vontade de sair de perto de sua família. Ainda assim, sentiu a necessidade de voluntariar e passou 1 ano em Brasília realizando trabalhos com a população, dando aulas de Espanhol, violão ou só interagindo com as crianças da área geográfica em que atuava.
Foi o melhor ano de sua vida, o que não significa a ausência de obstáculos pelo caminho.
- Aprender português foi horrível! - a ênfase no “horrível” foi palpável - Para mim todas as palavras estavam juntas e os brasileiros foram péssimos professores.
Isso porque enquanto ela tentava aprender, os brasileiros não paravam de mexer com ela, em tom de brincadeira, algo muito diferente em sua cultura, por isso acabou se fechando, sem entender que tudo não passava de uma “zueira”.
A timidez não a impediu de aprender a língua, tanto que, ao voltar para o Paraguai, após ter completado seu ano como voluntária, foi contratada pela Unión Paraguaya Adventista por ter português como segunda língua em seu currículo. Mas dessa vez sua passagem por sua terra natal não seria tão longa, porque agora já nutria o desejo de estudar em uma faculdade brasileira.
Durante seu um ano e meio, trabalhando como secretária, Yohana garantiu que seu trabalho fosse impecável, criou amizade com seus chefes e se tornou conhecida e admirada pelo presidente de seu escritório, tudo para conseguir uma boa indicação ou até mesmo uma bolsa de estudos para sua faculdade dos sonhos, o Centro Universitário Adventista de São Paulo, que fazia parte da mesma organização.
Eu expliquei minha situação para o pastor Evandro - seu chefe - mas ele disse que não era a hora e que era para eu esperar um pouco mais.
Depois de uma semana, enquanto Yohana atuava como tradutora para alguns brasileiros que visitavam o escritório, Evandro deu a notícia de que havia conseguido uma bolsa integral para ela.
- Eu nem sabia o que era bolsa integral, não sabia de nada. Quando ele me explicou que eu não ia precisar pagar nada eu comecei a chorar no meio da tradução, passei muita vergonha.
Passada outra semana ela já estava no Brasil, e aí sim começaram os“perrengues” burocráticos. Sobre o processo de matrícula, Yo destaca:
- Foi tudo muito difícil.
Mesmo já tendo morado no Brasil, seu documento de identificação, a Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM), já havia expirado, por isso precisou realizar todo o processo, que já havia feito, mais uma vez. A diferença, é que por vir com uma organização em sua primeira passagem pelo Brasil, ela teve todo um apoio, na faculdade foi bem diferente.
Precisei ir na Polícia Federal, tive que conseguir ficha de antecedentes criminais, certidão de nascimento, e eu já não falava mais português direito. Quem me ajudou foi um estagiário chamado Mateus, e só por ele eu consegui fazer as coisas, ninguém mais se importou muito.
Depois de pagar taxas, fazer documentos, autenticar vias e, com ajuda do Mateus, realizar sua matrícula, se tornou oficialmente uma aluna do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). Agora, precisava aprender tudo de novo.
- Eu achava que era fluente em português até começar a estudar - me conta entre risadas.
O curso escolhido foi arquitetura, uma formação, segundo ela, conhecida pela necessidade de “virar” muitas noites de estudo, em anos superiores. Mas, para Yo,o primeiro ano foi tão ruim quanto os mais avançados, por ter passado muitas noites estudando a linguagem técnica exigida na faculdade.
- Além disso, eu trabalhava na coordenação de Letras, então não podia ter nenhum erro de português. Logo eu que não sabia escrever direito.
A fase de adaptação também foi longa, das coisas simples, de comer feijão todo dia - algo incomum no Paraguai - até lidar com diferentes tipos de pessoas.
- Brasileiro é muito comunicativo, e eu venho de uma cultura mais reservada. Então às vezes eu achava que estavam invadindo meu espaço pessoal ou que eu era muito introvertida enquanto no Paraguai eu era a mais extrovertida de todos.
Por esse mesmo jeitinho brasileiro de ser que Yohana nunca teve a chance de se sentir sozinha ou solitária, acabou fazendo amigos - que queriam aprender uma nova língua mas nunca aprenderam - facilmente. Ainda bem, porque se dependesse de seus professores, as coisas teriam sido diferentes.
- Os professores não estavam muito preparados para receber estrangeiros. Eles exigiam de mim o mesmo que cobravam dos brasileiros. Uma professora chegou a me corrigir no meio de um seminário por conta de uma palavra que ficava diferente com meu sotaque.
Momentos como esse a constrangeram e falar português pareceu, novamente, uma tarefa intimidadora.
Seus amigos nunca a deixaram desanimar. Ela os classifica como “amigos de verdade”, que a ajudaram a passar pelo período da faculdade, virando noites, demonstrando interesse pelo seu bem estar, sua saúde e seus relacionamentos.
- Às vezes ninguém nem sabia nada de Arquitetura, mas estavam do meu lado demonstrando interesse pelo projeto e me ajudando como podiam.
Apesar dos pesares, Yo nunca se arrependeu de ter feito faculdade no Brasil, tanto pela qualidade do ensino, pela qualidade de vida - não tão quente quanto no Paraguai - e pela perspectiva de futuro. Mesmo já sendo formada, - um momento que marcou sua trajetória e a deixou extremamente realizada- sua história no país verde amarelo ainda não terminou.
- A faculdade trouxe algumas consequências. - diz se referindo ao namorado da Costa do Marfim que conheceu no curso - Ele mora aqui e eu não sou muito a favor de relacionamento a distância, então eu quero ficar por aqui, por enquanto! - mais uma vez houve um ênfase palpável no “por enquanto”.
Isso porque agora ela já se acostumou a experimentar novas culturas, novos ambientes e se adaptar a outras realidades. Para casa ela já não deve voltar, por lá ela é a “brasileira” e já não se encaixa tão bem quanto antes, mas o Brasil também é só um porto passageiro.
- Quem sai do próprio país passa a ver as coisas com uma mente muito mais aberta e ainda existe muito mundo pra ver e muita gente pra conhecer.
Yohana é paraguaia de sangue, mas também brasileira de coração, e uma coisa não anula a outra. Enquanto estiver tomando seu tereré, qualquer país vira casa - e ainda tem muitos a vir pela frente.